quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Fugaz

tu       d                        o
     t         e    m        s                  eu
            t             e            m           pó

terça-feira, 26 de novembro de 2013

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Domingo, dia da vó


Hoje foi o enterro da minha querida vozinha, a vó Toníca.
Ela estava com a saúde bem comprometida por causa de um câncer.
Ainda assim, mesmo debilitada com tratamento, ou com as complicações da doença, eu sabia que era só conversar com ela um pouco e, sem dificuldades, era possível arrancar um sorriso como este da foto.
Esta foto eu fiz assim. Estava tirando várias até que qualquer coisa tenha feito a gente rir e ela me presentear com essa alegria congelada no tempo. Nem posso imaginar quanta dor ela superou só pra esboçar esse momento feliz.
É muito louco quando a gente se dá conta de que alguém que a gente ama está para morrer.
Na última semana foi assim, o médico avisou que ela não resistiria, e liberou as visitas no hospital para que pudéssemos nos despedir.
A última vez que estive com ela foi na companhia dos meus dois irmãos, do meu avô e da minha tia Lia. Todo mundo estava ciente de que aquele era um momento de despedida.
Um dia antes eu tive a oportunidade de conversar no mesmo tom, e agradeci pelo quanto pude aprender com ela.
Mas naquela última visita vivemos um momento de cotidiano. Conversamos amenidades, nos lembramos da época em que ela morava no Carandá e corríamos com vizinhos no carrinho de rolimã fabricado pelo meu pai e meu avô. Meu irmão usava uma bermuda que ela tinha dado de presente e ela ficou feliz por ver isso.
Como sempre, ela estava preocupada perguntando se já tínhamos almoçado, falando com meu avô pra ir comprar pão pra gente. Vê se pode! Ela estava tão vulnerável, e mesmo assim estava nos protegendo.
Nos últimos meses começou a ficar evidente que a partida, na realidade, seria um descanso. Minha vó estava muito fraquinha, sentia muita dor, e além da doença ela sofria com os ferimentos das inúmeras picadas de agulha para dar soro, já que os enfermeiros tinham dificuldades para encontrar suas veias.
De certa maneira essa dor prolongada dela cumpriu o propósito de nos confortar neste momento.
Eu estava não só conformado, mas também tinha entregue minha avó. Queria que ela pudesse finalmente descansar. Ela não merecia tanto sofrimento, por tanto tempo.
Foi quando eu me lembrei de que nunca mais ia comer as rosquinhas de pinga que ela fazia. Seus pasteis. E o seu feijão! Meu Deus, o feijão da vó! Isso me deu uma tristeza grande.
É horrível quando percebemos que passamos a conjugar os verbos no passado.
A vó Toníca era do tipo de vó que, se a gente estivesse com preguiça de tomar banho antes de dormir, ela vinha e limpava nossos pés com um pano úmido. Eu me lembro disso, parece que foi ontem.
Tanto carinho.
Quando a gente começa a se lembrar, aí aperta aquele nó na garganta. E, na última semana, ainda que tivesse certeza de que era melhor para ela essa partida, meu peito argumentava o contrário cheio de razão urrando esses motivos de saudade.
Ontem, dia do velório, eu ainda fui, com minha mãe e minha prima, até o cemitério, para acompanhar a exumação do corpo do meu pai e do meu tio avô, já que minha avó seria enterrada no mesmo lugar.
No caminho pra lá, precisamos entrar em um bairro que eu não reconheci, porque tivemos que desviar caminho. Olhei pessoas que eu não conhecia, na rua que eu não reconhecia. Me senti um estrangeiro na minha cidade.
E aí comecei a perceber que talvez essa dor que nos incomoda agora exista porque, quando alguém morre, leva junto um pouco do nosso mundo. O que quero dizer é que neste fim de semana o mundo ficou mais hostil pra mim. De todas as pessoas que confio plenamente, que eu tenho certeza de que me abraçarão com amor sincero, tem menos uma aqui na Terra. E isso é significativo, porque o mundo tem bilhões de pessoas, mas são raras aquelas que nos amam com essa intensidade e respeito.
Na realidade, esse pedaço de mundo começou a ruir assim que recebi a notícia de que minha vó tinha câncer. Me lembro de que minha prima me avisou e, mais uma vez na minha vida, eu senti aquela impotência e insegurança de quando o chão parece que some debaixo dos nossos pés.
O mais louco é que dias antes da minha prima me dar a notícia, eu tinha escrito um poema que falava sobre a necessidade que temos de dar atenção às pessoas que nós amamos e que nos amam, principalmente aos mais velhos. Tem um verso nesse poema dizendo: "que a gente saiba queimar o pavio do tempo escasso ao lado de quem a gente ama de verdade". Parece que era um aviso.
De toda a forma, sei que vivi de verdade os momentos em que estive junto com a vó. Sempre que pude tentei fazê-la sorrir. Disse várias vezes que a amo, e esse verbo eu não conjugo no passado, nem agora.
Voltando ao episódio da exumação. No caminho para o cemitério, quando chegamos na rua de saída daquele bairro que achei que não conhecia, foi quando pude perceber que aquele mesmo bairro, anos atrás, era o mesmo loteamento que meu pai, que era corretor de imóveis, fazia plantões de venda. Ele me levava e a gente podia passar um tempo conversando, brincando. Ele me disse, certo dia: "daqui a cinco anos, filho, você vai ver esses terrenos aqui todos com casas, um bairro novo". Assim, o bairro ficou familiar novamente, e, mesmo que daqui a poucos minutos eu estivesse ali, de frente para os restos de meu pai, fazendo a exumação, tive este momento com ele vivo na minha memória.
A exumação é um processo estranho. Quando o pessoal do cemitério chegou até o caixão dele e destampou revelando seu corpo, contemplei. Meu pai dizia que seria legal se pudessem usar seu esqueleto em aulas de ciências. Pelas várias características dele, pelo seu senso de humor, eu sabia que, se ele estivesse ali do meu lado naquele momento concordaria comigo no seguinte ponto: ele estava um esqueleto bem elegante. Como as roupas não se decompõe rápido, ele ainda tinha terno e gravata. Estava chique.
À medida que o rapaz começa a separar as roupas dos ossos, e o esqueleto começa a desmontar, é que dá um incômodo maior. Depois eles pegam tudo que é osso, separado dos outros materiais que foram enterrados juntos, e colocam numa sacola azul. A sacola é pequenina.
No fim, ocupamos bem pouco espaço.
Também acompanhamos a exumação do meu tio avô.
Hoje, ainda no velório, chorei. Além das lembranças, a imagem da minha família também triste corta o coração. Minha mãe, nora que ama tanto minha avó, meu tio Miguel e minha tia Lia, filhos da Tonica, e meu avô Paquinho, seu companheiro por tantas décadas. Vê-los sofrendo deixa meu coração em carne viva, e a gente sente uma dor a cada respiração.
O padre veio, fizemos as orações.
Até então, meu coração estava partido.
Mas aí, veio a hora de fechar o caixão.
Naquele instante, senti conforto, como se ela estivesse ao meu lado. Senti mesmo sua presença, ainda que por um segundo. E a imaginei sorrindo, muito feliz, me dizendo, daquele jeito de avó: "estou em um lugar bom, André, cheio de anjinho, tudo com asa". Me apaziguou. Sinceramente.
Outra alegria foi perceber o velório cheio de gente jovem, nós, seus netos, além dos bisnetos, noras e genro, primos, irmãos, sobrinhos, filhos e seu marido. Me toquei de que a vó aproveitou a vida. E mais, ela teve muita sorte. Que alegria, ver tanta gente que a amava ali. Ela teve a chance de cuidar de tantos netos. Criou filhos que cuidaram dela até o fim. Viveu o amor de mais de sessenta anos junto com meu avô, que em todos os momentos esteve ao seu lado, segurando sua mão, dizendo palavras de conforto, e sendo o casal mais cheio de amor verdadeiro que eu já vi. Ela conseguiu ver os bisnetos nascerem, todos que estavam a caminho até o dia de hoje. Ela queria isso e ela conseguiu. Isso é uma lista de motivos de alegria.
Dali, fomos para o enterro. No caminho, percebi que dia era: domingo.
Não é a toa. Domingo era dia de ir almoçar na casa da vó.
Quando meu pai estava aqui, íamos religiosamente.
E era tão gostoso.
Sempre que a gente chegava lá, ainda cedo, ela estendia um pano na mesa da cozinha, colocava pães que meu avô comprava na mercearia ali perto, margarina, mortadela, presunto, queijo, leite, café e refrigerante.
Hoje eu me lembro e percebo que aquilo era o céu.
O paraíso é isso.
E aí eu vi o que estava acontecendo. Era domingo, e finalmente, depois de quase sete anos, minha vó e meu pai estariam juntos de novo.
Eu imaginei a gente naquela cozinha, os dois conversando, e o pão à mesa.
Não dá pra temer a morte, se a morte é ir lá conversar com eles nessa cozinha, comer o pão da vó, rir com as conversas do meu pai.
Pensando a respeito do que vivi nos últimos dias, chego a algumas conclusões.
Ainda que o sofrimento dessa morte prolongada seja grande, há lados positivos, como poder preparar a família, preparar-se e, finalmente, despedir-se das pessoas que nós amamos. Em geral esse tempo não existe e estamos distraídos para aproveitar o tempo que temos para dizer tudo que queremos dizer para as pessoas que amamos.
Além disso, tem algumas crises que trazem descobertas. Ver meu pai sendo exumado, na realidade, possibilita formas diferentes de interpretação. Posso vê-lo ali, e acreditar que aquilo resume nossa existência. Que nós somos isso, apenas. E sim, nós somos isso.
Não apenas, mas somos isso também. Porque tem outra maneira de pensar. Aqueles ossos não eram o meu pai. Era algo como pedras, objetos inanimados, só. Aí que está a descoberta, a revelação da beleza que existe na vida.
Algum tempo atrás aqueles ossos equilibravam meu pai. Tinha vida ali. E é uma viagem muito louca quando você começa a pensar no que é a vida, de que matéria é feita, onde ela está.
Eu estava tranquilo pra ver os restos do meu pai ontem, assim como em sua partida, e agora na partida da vó, porque eu sei que eles não estão ali naquele momento, é uma certeza que todo mundo pode ter, a vida é muito maior. Ela é feita de elementos que nos escapam, de matérias que não conseguimos conceber. O esqueleto é apenas um suvenir que deixamos da nossa vida.
Como era possível aquele crânio ter sido meu pai? É incrível isso, é magnífico.
A vida é incompreensível e ela, por não ser entendida, pode ser percebida de ângulos diversos.
É como uma sacola voando no céu. Ela tem vida naquele movimento. Pode ser que alguém a pegue no ar, rasgue a sacola, queime a sacola, enterre a sacola. Mas o vento vai permanecer. E se você fechar os olhos você pode senti-lo.
Tinha uma árvore na frente da minha casa. Ela estava comprometida porque deu cupim. Com medo de que ela caísse durante alguma tempestade, minha mãe pediu para que a prefeitura a tirasse. Gostava daquela árvore, ela me dava paz. Mas era para ser assim, já que estava mesmo bem comprometida, como constatamos quando vimos seu tronco oco. Naquele dia, muito das folhas que caíram nós recolhemos e eu me lembro de ter feito uma cama no jardim da minha mãe, para que essas folhas pudessem adubar suas roseiras. Minha surpresa aconteceu tempos depois, quando reparei que, entre as roseiras, cresciam plantas com o mesmo tipo de folha da árvore. São outras plantas, filhas daquela árvore, mas pra mim é como se fosse a continuação daquela árvore. Quando passo a mão naquelas folhas é como se eu estivesse acariciando a copa daquela árvore que tínhamos aqui. A vida é resistente, ela é teimosa, ela continua.
Então, eu me toquei que minha avó, depois de todos esses meses, venceu a guerra. Ela lutou esse tempo todo com um câncer que a trazia dor e sofrimento, e hoje esse sofrimento acabou. Na realidade, quem perdeu foi o câncer, porque ele precisava do corpo da minha avó vivo para continuar. Hoje, nós enterramos este câncer. Não minha avó. Porque nós não precisamos do corpo dela para saber que ela existe. Cada momento que pensamos nela, ela está em nós. Em nossos genes, ela permanece viva. Ela ajudou a construir nossa personalidade. Ela nos ensinou e seus ensinamentos nós vamos passar adiante. Ela está tão viva como no dia em que nasceu.
E isso dá mais vontade de viver.
Ver bisnetos de minha avó no velório, ainda bebês, ver amigos que vão ser pais daqui a pouco, me enche de alegria. Outra alegria que tenho é ver que, assim como o céu é comer o pão da minha avó com meu pai e meu avô na cozinha deles, outros pedaços de céu ainda estão aqui, perto de mim, na Terra. O céu é a garrafa de gelo que minha tia Lia sempre deixa na cozinha. O céu é rir com as piadas do meu tio Antônio. O céu é ver meu tio Miguel se divertindo com seus cachorros. O céu é o café da minha tia Gê. O céu é minha mãe inteira. O céu é meu avô Paquinho sorrindo tomando uma cerveja com a gente. O céu é o pão surpresa da minha avó Sonai. O céu é tirar a grama da frente de casa com meu avô Edson.
O céu é aqui, o céu é lá. Hoje é domingo e estamos todos juntos.

terça-feira, 23 de julho de 2013

O frio e a rua


Hoje pela manhã foi foda tomar banho. Sair debaixo dos cobertores e chegar ao banheiro foi suave comparado a tirar a roupa e sentir aquele ar frio até que o chuveiro esquentasse a água o suficiente pra se tornar suportável. Ainda assim, até o corpo se acostumar com a situação, a respiração acelera e os pelos arrepiam.

Depois que o vapor toma conta do lugar, tudo fica brando, e, ao vestir-se, o frio intenso dá lugar a um incômodo menor, light. Só me lembro novamente dele quando vejo a temperatura no celular, 5 graus, com sensação térmica de -1 em Campo Grande. Atualizo o aplicativo, porque acredito que a informação seja da madrugada e não das sete e meia da matina, mas ele confirma novamente aquela informação. Caralho, tá frio.

Me encasaco e parto pro trampo. Considero a hipótese de pegar um táxi (porque não tenho carro), mas avalio que encasacado pode ser tranquilo ir de bike, como de costume, já que é perto de casa. Que nada. Na primeira quadra já vejo o sufoco que vai rolar. Escolho nem subir à ciclovia da orla, e vou próximo à calçada para tentar usar as casas como escudos para o vento. Frio da porra! O ar gelado atravessa meus dois casacos e minha camisa e rasga meu peito, barriga, braços, isso sem falar no rosto e nas mãos que congelam expostos ao vento. Essa falta de resistência ao frio deve ser explicada, em Campo Grande as temperaturas sempre são altas, poucas vezes faz tanto frio.

Quadra por quadra parece que o trabalho está cada vez mais longe, e o vento cada vez mais intenso. Observo o pessoal dentro dos carros, protegidos do frio. Também vejo a moça cheia de roupas que aguarda na calçada segurando um capacete, provavelmente sua carona de moto, e uma outra que desfila pela orla também toda coberta indo a pé para algum lugar. Todos estão nitidamente com frio.

No meio do caminho passo por um homem que parece em situação de rua. Ele tem um pano fino vermelho envolto ao corpo, está sentado, com uma bolsa ao lado onde há uma ou outra peça de roupa, pelo que consigo enxergar de cima da bike. Paro e pergunto:

- O senhor está bem agasalhado aí?
- Que nada! - responde.

Tem um lance que penso faz um tempo. Em uma sociedade organizada devíamos conseguir efetivamente articular uma rede de proteção às pessoas. Ao menos garantir o mínimo de dignidade. Eu sei que isso já foi pensado há tempos e existem vários órgãos dentro da administração pública responsáveis por essa questão, assim como entidades diversas. Mas se isso já foi pensado por tanta gente, porque aquele senhor está ali, no frio?

- O senhor já foi ali na esquina? Tem um lance lá de assistência social, eles podem te ajudar.
- Fui já, nem dão nada. Eles querem me levar lá pro tratamento pra eu ficar trabalhando. Eu não quero isso.
- Mas o senhor tá com frio aí?
- Tô, mas agora tá passando já. O frio já passou.
- Passou nada, a previsão é que hoje vai esfriar mais.

Enquanto a gente conversa, estudantes atravessam, bem agasalhados. Eu continuo em cima da bike porque estou a caminho do trampo. Começo a perceber que provavelmente esse homem deve ter passado por necessidades várias vezes. Já foi encaminhado, dentro da assistência social, para algum lugar, alguma vez. Mas ele optou por não buscar isso de novo. Essa é a questão.

- E nas igrejas, eles não ajudam o senhor nesse frio?
- Nada. Eu já fui naquela ali, naquela outra. Falei com o pastor (não me lembro o nome que ele disse), fiquei lá um tempo. Mas eles querem que a gente fique rezando o tempo inteiro. É toda hora rezando. Eu falei para eles, eu rezo, mas eu rezo quando acordo e na hora de dormir, mais que isso se vocês quiserem é demais. Eles parece que fazem uma, como é que se diz, lavagem cerebral na gente.
- E não tem algum lugar onde o senhor possa ir pra não passar frio?
- A noite eu durmo num lugarzinho que tem ali, ou outro que tem aqui, que fica protegido do vento, me enrolo no plástico e me esquento.
- Tem um lugar ali na rodoviária velha, a Defesa Civil, vê lá se alguém te ajuda. (eu digo, sem saber ao certo se é essa a função da Defesa Civil, mas sabendo que alguma orientação ela pode dar).
- Ah, tem? Eu nem sabia, vou lá depois.
- Mas e aí, o senhor vai passar frio mesmo?
- Ah, qualquer coisa eu peço em alguma casa, o pessoal ajuda.

Instituições da administração pública e igrejas não parecem ser opção para esse homem, que permanece ali, naquele frio da pêga. Ele aposta na ajuda individual. Suas expectativas se comprovam em meio à conversa. Um rapaz aparece e oferece um cobertor, e o senhor o agradece.

- Opa, muito obrigado, eu vou guardar aqui sempre. - diz, recolhendo na bolsa.

Fico feliz com a atitude. Me despeço e sigo. Como passo pela Defesa Civil no caminho para o trabalho, colo lá para saber se eles têm condição de ajudar. O prédio fica junto ao da guarda municipal. Uma guarda me informa que deve haver alguém de plantão ali. Vou até o lugar, e nada. Ninguém. O carro está ali fora, mas as portas da sala estão fechadas, parece não ter ninguém ali.

Sempre que tem frio, muita gente se solidariza com a situação de quem está na rua. Pelo facebook é possível ver várias manifestações nesse sentido, de reunir uma galera e doar agasalhos. Mas será que não há um sistema que possa simplificar isso, que una as pontas - quem doa e quem recebe - para que ninguém mais tenha que passar frio, mesmo com tanta gente disposta a ajudar?

Vou seguindo o caminho pro trampo e a guarda que me orientou pergunta se tinha alguém ali. Eu digo que não e ela me orienta a ir à sala da Guarda Municipal, que é ao lado, para informar à secretária, que chamaria alguém do Cetremi (não sabia o que significava isso, só que era parte da administração).

Ok, vou até a secretária, que me atende com uma cara não muito agradável. Eu entendo. Eu não queria estar ali, porque não é função da polícia, ou da guarda, atender a este tipo de demanda. Mas quem é o responsável nessa situação? Não é a primeira vez que vejo alguém querendo ajudar um homem em situação de rua se orientando com alguém da segurança pública e não da assistência social. Parece que a assistência social é um órgão distante, pouco conhecido e divulgado, é como se ninguém soubesse pra quem ligar nesses casos.

Informo à secretária e ela me pergunta onde o senhor está. Digo as referências, mas ela me avisa que tenho que ter o endereço certinho, nome da rua e tal. Também me diz que não compensa chamar o pessoal do Cetremi, porque até eles chegarem com o carro o homem já terá saído de lá. Desisto da tentativa porque me lembro de que o homem chegou a ser atendido por alguém e foi mandado para um lugar no qual ele teve que trabalhar e até fugiu a pé (isso não está no diálogo acima, mas foi dito). Pergunto sobre o pessoal da Defesa Civil, se ela sabe se eles podem ajudar. Ela diz que não, porque eles cuidam de desastres. "Mas o frio mata, né" murmuro. Tudo bem, talvez também não seja função da Defesa Civil dar um abrigo para aquele homem em situação de rua.

O que acontece? Por que ainda tem gente passando frio nas ruas? Somos capazes de criar sistemas de gerenciamento que fazem produtos saírem das fazendas e chegarem às gôndolas de supermercado, somos capazes de produzir commodities e exportar para o mundo todo e ainda não criamos um sistema capaz de sanar o frio das pessoas que necessitam? Como é possível ainda não sabermos ao certo a quem recorrer na hora de conseguir um agasalho ou mesmo na hora de doar um agasalho para que chegue a quem precisa? E as instituições? É como se sempre quisessem algo em troca para oferecer solidariedade, como trabalho ou a conversão, ao menos é o que os comentários do homem transparecem.

Cheio das dúvidas, vou para o trabalho, finalmente. O frio continua cortando.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Da poesia

Escrevê-la é desnudar-se.
É romper a castidade do silêncio.
É lamber a orelha com palavras.
É arrepiar a nuca da alma.
É um aperto na coxa dos desejos.
É um tapa na bunda da vaidade.
É um puxão no cabelo do ego.
É um estímulo ao ponto G do hipotálamo.
É uma masturbação cerebral coletiva.
É um ato libidinoso.