terça-feira, 23 de julho de 2013

O frio e a rua


Hoje pela manhã foi foda tomar banho. Sair debaixo dos cobertores e chegar ao banheiro foi suave comparado a tirar a roupa e sentir aquele ar frio até que o chuveiro esquentasse a água o suficiente pra se tornar suportável. Ainda assim, até o corpo se acostumar com a situação, a respiração acelera e os pelos arrepiam.

Depois que o vapor toma conta do lugar, tudo fica brando, e, ao vestir-se, o frio intenso dá lugar a um incômodo menor, light. Só me lembro novamente dele quando vejo a temperatura no celular, 5 graus, com sensação térmica de -1 em Campo Grande. Atualizo o aplicativo, porque acredito que a informação seja da madrugada e não das sete e meia da matina, mas ele confirma novamente aquela informação. Caralho, tá frio.

Me encasaco e parto pro trampo. Considero a hipótese de pegar um táxi (porque não tenho carro), mas avalio que encasacado pode ser tranquilo ir de bike, como de costume, já que é perto de casa. Que nada. Na primeira quadra já vejo o sufoco que vai rolar. Escolho nem subir à ciclovia da orla, e vou próximo à calçada para tentar usar as casas como escudos para o vento. Frio da porra! O ar gelado atravessa meus dois casacos e minha camisa e rasga meu peito, barriga, braços, isso sem falar no rosto e nas mãos que congelam expostos ao vento. Essa falta de resistência ao frio deve ser explicada, em Campo Grande as temperaturas sempre são altas, poucas vezes faz tanto frio.

Quadra por quadra parece que o trabalho está cada vez mais longe, e o vento cada vez mais intenso. Observo o pessoal dentro dos carros, protegidos do frio. Também vejo a moça cheia de roupas que aguarda na calçada segurando um capacete, provavelmente sua carona de moto, e uma outra que desfila pela orla também toda coberta indo a pé para algum lugar. Todos estão nitidamente com frio.

No meio do caminho passo por um homem que parece em situação de rua. Ele tem um pano fino vermelho envolto ao corpo, está sentado, com uma bolsa ao lado onde há uma ou outra peça de roupa, pelo que consigo enxergar de cima da bike. Paro e pergunto:

- O senhor está bem agasalhado aí?
- Que nada! - responde.

Tem um lance que penso faz um tempo. Em uma sociedade organizada devíamos conseguir efetivamente articular uma rede de proteção às pessoas. Ao menos garantir o mínimo de dignidade. Eu sei que isso já foi pensado há tempos e existem vários órgãos dentro da administração pública responsáveis por essa questão, assim como entidades diversas. Mas se isso já foi pensado por tanta gente, porque aquele senhor está ali, no frio?

- O senhor já foi ali na esquina? Tem um lance lá de assistência social, eles podem te ajudar.
- Fui já, nem dão nada. Eles querem me levar lá pro tratamento pra eu ficar trabalhando. Eu não quero isso.
- Mas o senhor tá com frio aí?
- Tô, mas agora tá passando já. O frio já passou.
- Passou nada, a previsão é que hoje vai esfriar mais.

Enquanto a gente conversa, estudantes atravessam, bem agasalhados. Eu continuo em cima da bike porque estou a caminho do trampo. Começo a perceber que provavelmente esse homem deve ter passado por necessidades várias vezes. Já foi encaminhado, dentro da assistência social, para algum lugar, alguma vez. Mas ele optou por não buscar isso de novo. Essa é a questão.

- E nas igrejas, eles não ajudam o senhor nesse frio?
- Nada. Eu já fui naquela ali, naquela outra. Falei com o pastor (não me lembro o nome que ele disse), fiquei lá um tempo. Mas eles querem que a gente fique rezando o tempo inteiro. É toda hora rezando. Eu falei para eles, eu rezo, mas eu rezo quando acordo e na hora de dormir, mais que isso se vocês quiserem é demais. Eles parece que fazem uma, como é que se diz, lavagem cerebral na gente.
- E não tem algum lugar onde o senhor possa ir pra não passar frio?
- A noite eu durmo num lugarzinho que tem ali, ou outro que tem aqui, que fica protegido do vento, me enrolo no plástico e me esquento.
- Tem um lugar ali na rodoviária velha, a Defesa Civil, vê lá se alguém te ajuda. (eu digo, sem saber ao certo se é essa a função da Defesa Civil, mas sabendo que alguma orientação ela pode dar).
- Ah, tem? Eu nem sabia, vou lá depois.
- Mas e aí, o senhor vai passar frio mesmo?
- Ah, qualquer coisa eu peço em alguma casa, o pessoal ajuda.

Instituições da administração pública e igrejas não parecem ser opção para esse homem, que permanece ali, naquele frio da pêga. Ele aposta na ajuda individual. Suas expectativas se comprovam em meio à conversa. Um rapaz aparece e oferece um cobertor, e o senhor o agradece.

- Opa, muito obrigado, eu vou guardar aqui sempre. - diz, recolhendo na bolsa.

Fico feliz com a atitude. Me despeço e sigo. Como passo pela Defesa Civil no caminho para o trabalho, colo lá para saber se eles têm condição de ajudar. O prédio fica junto ao da guarda municipal. Uma guarda me informa que deve haver alguém de plantão ali. Vou até o lugar, e nada. Ninguém. O carro está ali fora, mas as portas da sala estão fechadas, parece não ter ninguém ali.

Sempre que tem frio, muita gente se solidariza com a situação de quem está na rua. Pelo facebook é possível ver várias manifestações nesse sentido, de reunir uma galera e doar agasalhos. Mas será que não há um sistema que possa simplificar isso, que una as pontas - quem doa e quem recebe - para que ninguém mais tenha que passar frio, mesmo com tanta gente disposta a ajudar?

Vou seguindo o caminho pro trampo e a guarda que me orientou pergunta se tinha alguém ali. Eu digo que não e ela me orienta a ir à sala da Guarda Municipal, que é ao lado, para informar à secretária, que chamaria alguém do Cetremi (não sabia o que significava isso, só que era parte da administração).

Ok, vou até a secretária, que me atende com uma cara não muito agradável. Eu entendo. Eu não queria estar ali, porque não é função da polícia, ou da guarda, atender a este tipo de demanda. Mas quem é o responsável nessa situação? Não é a primeira vez que vejo alguém querendo ajudar um homem em situação de rua se orientando com alguém da segurança pública e não da assistência social. Parece que a assistência social é um órgão distante, pouco conhecido e divulgado, é como se ninguém soubesse pra quem ligar nesses casos.

Informo à secretária e ela me pergunta onde o senhor está. Digo as referências, mas ela me avisa que tenho que ter o endereço certinho, nome da rua e tal. Também me diz que não compensa chamar o pessoal do Cetremi, porque até eles chegarem com o carro o homem já terá saído de lá. Desisto da tentativa porque me lembro de que o homem chegou a ser atendido por alguém e foi mandado para um lugar no qual ele teve que trabalhar e até fugiu a pé (isso não está no diálogo acima, mas foi dito). Pergunto sobre o pessoal da Defesa Civil, se ela sabe se eles podem ajudar. Ela diz que não, porque eles cuidam de desastres. "Mas o frio mata, né" murmuro. Tudo bem, talvez também não seja função da Defesa Civil dar um abrigo para aquele homem em situação de rua.

O que acontece? Por que ainda tem gente passando frio nas ruas? Somos capazes de criar sistemas de gerenciamento que fazem produtos saírem das fazendas e chegarem às gôndolas de supermercado, somos capazes de produzir commodities e exportar para o mundo todo e ainda não criamos um sistema capaz de sanar o frio das pessoas que necessitam? Como é possível ainda não sabermos ao certo a quem recorrer na hora de conseguir um agasalho ou mesmo na hora de doar um agasalho para que chegue a quem precisa? E as instituições? É como se sempre quisessem algo em troca para oferecer solidariedade, como trabalho ou a conversão, ao menos é o que os comentários do homem transparecem.

Cheio das dúvidas, vou para o trabalho, finalmente. O frio continua cortando.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Da poesia

Escrevê-la é desnudar-se.
É romper a castidade do silêncio.
É lamber a orelha com palavras.
É arrepiar a nuca da alma.
É um aperto na coxa dos desejos.
É um tapa na bunda da vaidade.
É um puxão no cabelo do ego.
É um estímulo ao ponto G do hipotálamo.
É uma masturbação cerebral coletiva.
É um ato libidinoso.